quinta-feira, 16 de junho de 2005

Camaradas

Fui educado em valores opostos ao comunismo.
Não acredito na luta de classes, muito menos acredito que todos os patrões sejam maus e todos os trabalhadores sejam bons. Não acredito que a propriedade colectiva seja a solução para os males da sociedade.
Condeno o totalitarismo da União Soviética, da Coreia do Norte, de Cuba e de tantos outros lados, e os milhões de mortos e de presos políticos. Condeno-lhes a tentativa de "abafar" Deus na sociedade. Acho que a excessiva regulamentação das leis de trabalho, em última análise, acaba por prejudicar os trabalhadores, e discordo absolutamente que as drogas e o aborto devam ser legalizados.
Tenho aversão visceral à foice e ao martelo, e embirração particular pela imagem esterotipada do jovem de T-shirt do Che, mochila da tropa e lenço palestiniano (da mesma maneira que lhes deve irritar o igualmente padronizado look betinho). Nunca fui, nem conto ir, à Festa do Avante. E até hoje sempre votei no PP.
Os meus avós e boa parte dos tios maternos sempre viveram felizes e contentes com o regime salazarista, mas ninguém na minha família teve a vida ou a propriedade ameaçada depois do 25 de Abril; reconheço que para quem passou por essa situação seja mais difícil aceitar alguma bondade do outro lado.
Mas não posso deixar de lembrar a quantidade de comunistas presos e torturados pela PIDE, e a morte de alguns (não tantos, mas alguns). Da mesma maneira que não posso deixar de lembrar a sua tentativa de transformar Portugal numa ditadura comunista depois do 25 de Abril, de "educar" as populações e de sanear os que não eram de outra cor política. Nem consigo compreender as tentativas recentes de branquear a ditadura coreana, ou até mesmo o estalinismo!, nas páginas do Avante.
Mas apesar de tudo, acredito nas boas intenções dos comunistas. O meu amigo Zé Maria, convicto militante, é uma das pessoas mais puras que conheço e já me deu grandes exemplos na vida.
Acredito que a preocupação dos comunistas pelas classes mais pobres é genuína e partilho o sonho de um dia atingirmos uma sociedade mais justa, onde o sol possa brilhar para todos. Afinal, a Doutrina Social da Igreja tem igualmente como príncípio fundamental a preferência pelos mais pobres.
Tenho boa impressão da maioria dos políticos comunistas, não me parece que façam da política um meio para atingirem riqueza ou prestígio pessoal, como tantos outros.
Tudo isto para dizer que não serei nunca um admirador de Cunhal, por discordar das suas ideias e das suas tentativas de as pôr em prática no nosso país, mas que lhe reconheço (e aos seus seguidores) uma simplicidade na forma de viver que me impressiona. Tal como me impressionou a homenagem que lhe prestou tanta gente ontem, no seu funeral*.
Um dia após a morte de Cunhal, quando eu trocava algumas mensagens maldosas com os meus pais, do género "O Pai que não se esqueça da gravata preta amanhã", recebi a seguinte resposta da minha Mãe: "O Evangelho de hoje dizia para amarmos os nossos inimigos. Perdi a vontade de brincar com o Cunhal."
E se até o Papa foi de coração aberto a Cuba, acho que a nossa preocupação deve ser criar pontes (sem cedências que nos descaracterizem) e não criar mais desentendimentos.

*Uma private para os puristas da linguagem bem: também se deve dizer enterro quando a pessoa é cremada?

5 comentários:

Anónimo disse...

Parabéns, Tiago! Esse sim, é um sinal de inteligência! Gostei MUITO do teu post. Tia Dáda

méri disse...

não sou uma purista, mas lembrei-me de "cremadura".

- vais sair logo à noite?
- não, hoje tenho uma cremadura...

mas uma amiga minha, a batukada, sugeriu "queimada", que eu acho genial!

- e amanhã, vamos à praia?
- não, não posso... tenho uma queimada.

DM em Caracas disse...

Bem, mal vês a assinatura sabes logo que vem uma crítica mázinha por teres andado a dizer bem do Cunhal. E tens toda a razão, eu sou muito previsível...
O homem não era o santinho idealista que toda a gente agora diz, era um facínora do piorio! Quando ele foi preso, o pai foi defendê-lo a tribunal mas ele não aceitou, disse que não era filho dele, era um filho do proletariado.
Por outro lado, as pessoas que colaboraram mais de próximo com ele (como a Zita Seabra que testemunhou isso na TV) dizem que ele era irrascível e com um feitio terrível.
Vivia para o ideal dele de uma maneira totalmente irracional, sem deixar que nada nem ninguém a isso se opusessem e quando voltou de Moscovo, que era a miséria que hoje sabemos, disse que a URSS era o "Sol que ilumina o mundo"!

Anónimo disse...

A mãe Isabel... sempre com um comentário certeiro...

méri disse...

continuo sem ser purista, mas não posso deixar de dar o termo certo para a tua pergunta em jeito de nota de rodapé, tiago:

- "cremação", pois então. apesar de "enterro" continuar no léxico de todos nós, qualquer que seja o método.

e, à parte opiniões políticas, álvaro cunhal faz parte da história de portugal. com a sua morte morre tb parte da nossa história - ou agora é que verdadeiramente entra na história - depende da perspectiva...