quinta-feira, 3 de fevereiro de 2005

Crónica de Montes Claros


Quero partilhar convosco um relato que a Rita nos mandou do Brasil. Lembro com saudade o Verão de 2003, em que conheci bem o bairro do Menino Jesus, sem dúvida o sítio mais duro onde já estive. Num pensamento mais imediato, pensei até que ponto não seria mais útil estar lá do que aqui. Quem sabe se isso não acontecerá um dia... Por agora, resta-me agradecer o testemunho destes amigos e lembrar que nas pessoas e situações que nos são mais próximas também há muito a fazer.

Montes Claros, 27 de Janeiro de 2005

Uma manhã que de maneira alguma me pode deixar indiferente. Uma manhã que me veio mostrar um outro Brasil, longínquo daquele Brasil caloroso, feliz e alegre a que já me estava a habituar.
Fome? Não me pareceu que a fome fosse o maior problema no Bairro do Menino Jesus. Entre o feijão e o arroz, as pessoas parecem conseguir sobreviver. E por muito que me custe fazer a pergunta, o pensamento não deixa de me vir à cabeça: "Sobreviver para quê?"
Miséria? Muita. Miséria humana. Falta de higiene. Falta de...
Nem sei bem o que falta... Falta tanto.

O que falta a uma mãe que não sabe dizer a idade da filha de 3 meses? Que nos responde "Meu marido é que sabe quando a menina nasceu". A menina, Maria Eduarda, vestia umas cuecas e uma T-Shirt que tentavam esconder as nódoas negras nas suas costas, e o rabo todo assado, enquanto os seus irmãos, de 3 e 4 anos, cheios de arranhões nas costas, que mais pareciam sinais de violência doméstica, brincavam nus pela rua.

O que falta a uma mulher que teve um desastre há 7 anos, andou 2 de cadeira de rodas e outros 2 de muletas, até que quando voltou a andar, começou a ter problemas de memória? Uma mulher que tem de tomar 14 comprimidos por dia, só que não os toma porque a fazem engordar, e em vez disso dava-os ao cão, que entretanto morreu?... Uma mulher que se agarra a nós, com os olhos a brilhar, ávida de atenção, e nos mostra desesperadamente as fotografias das suas filhas que estão sob a caução da avó, por ela ter sido considerada pelo tribunal incapaz de tomar conta da casa e das meninas?

O que falta a uma mulher cujo marido se suicidou há muito tempo (5 meses, viemos depois a descobrir), que vive em 10 m2, com quatro filhos semi-nus, dois dos quais dormem no chão? Faltará uma casa em condições, já que os 10 m2 são irrespiráveis, e mais parecem uma pocilga, ou faltará alguém que lhe ensine a tomar conta da casa? Faltará um estendal no jardim para ela pendurar a roupa encharcada que atira para dentro de casa para evitar que a roubem, ou faltará a esta mulher deixar de ter medo dos assaltos? Entre tantas outras coisas, falta-lhe tempo. Tempo para chorar, como dizia a Zézinha.

O que falta ao William, um rapazinho de 14 anos, deficiente, que fomos encontrar a gatinhar à porta de casa, nu, cheio de bosta de cavalo pelas pernas?... Ou à D. Eurides, sua Avó, cujo filho (pai de William) foi assassinado porque a mulher roubou uma coisa para comer que custava 3 reais? Mulher essa que depois se suicidou. O que falta a esta gente que faz com que a vida de duas pessoas valha 3 reais?

A mim, falta-me saber onde posso intervir. Se posso intervir. Onde posso ajudar. Onde posso e devo estar. O que devo fazer. Falta-me saber para que é que fui chamada. Aprender como controlar as minhas lagrimas, pelo menos quando estou com estas pessoas. Falta-me, depois de manhãs como estas, compreensão para com todos os que permitimos que no século XXI haja tanta miséria e tanta tristeza. Desde as pessoas que vivem aqui, no meio desta pobreza, e assistem a tudo isto, e por razões que desconhecemos se mantêm quietas e fecham os olhos; a todos nós, privilegiados que preferimos virar a cara e ignorar, desculpando-nos que não conseguimos mudar o mundo inteiro.

Rita Lancastre


PS: Hoje, aqui na Trafalgar Square, houve uma grande manifestação, em nome da campanha "Make Poverty History". Nelson Mandela discursou perante a multidão que encheu a praça (eu incluído!), pedindo aos líderes do G7 que não olhem para o lado e façam de uma vez por todas aquilo que está perfeitamente ao seu alcance, no combate à pobreza mundial. Tony Blair já disse que não vai deixar passar o tema, vamos ver até onde se vai avançar.
Menino Jesus

1 comentário:

Maffa disse...

Tá lindo o texto! vou já escrever uma carta à rita... a dar apoio, nao sei tentar fazer qualquer coisa... Ai ai... este mundo... Será que avanca?!?