sábado, 27 de novembro de 2004

Ibrahim

«Qualquer pessoa que cruze o nosso caminho pode revelar-nos algum aspecto importante do rosto de Deus. (...) De Deus somos sempre aprendizes e peregrinos e os nossos companheiros de peregrinação não são só os nossos irmãos na fé mas a humanidade inteira.»

As palavras são do Pe. Nuno Tovar de Lemos, no livro que lançou esta semana e que eu hoje recebi pelo correio (muito obrigado, Francisca!). E não podiam vir mais a propósito.
Ontem à noite fui ao pub do costume com o Eduardo e o Ibrahim. Só o conhecia da mesa de jantar, onde trocámos algumas piadas sobre a poligamia. É um turco de 24 anos, a fazer um LLM em Direito, pouco à vontade com o inglês (várias vezes se lamenta de não conseguir exprimir tudo o que queria). Levanta-se todos os dias às 5 ou 6 da manhã, não só porque estuda bastante mas também para fazer a primeira das 5 orações do dia.
Pedimos duas cervejas e uma Coca-Cola; para quem não sabe, os muçulmanos não podem beber álcool, nem comer porco.
Começa por nos falar da contradição que há na Turquia, onde 99% da população se diz islâmica mas são proibidos alguns sinais exteriores, como o véu islâmico das raparigas na escola. Dá um exemplo ainda mais estranho: um aluno do 12º ano, ao candidatar-se à universidade, vê a sua nota diminuída em 30% caso tenha estudado numa escola religiosa. Diz com pena que uma pessoa no seu país não pode afirmar livremente como muçulmana.
“Gosto de vocês, que são católicos; não temos a mesma religião, mas não importa, ambos adoramos um Deus. E fico contente por vocês por poderem dizer à vontade que são católicos nos vossos países.”
Fico surpreendido quando nos diz que os muçulmanos acreditam em Jesus, não como Filho de Deus mas como profeta (o segundo maior, depois de Maomé), e acreditam até que Ele veio para salvar toda a humanidade.
Perguntamos-lhe qual é a maior festa do ano para os muçulmanos. “É o Eid al-Fitr, que marca o fim do Ramadão. Nesse dia matamos um animal em honra de Deus; depois, a tradição diz para ficarmos com um terço para a família e darmos um terço aos vizinhos e outro aos pobres. Mas normalmente acabamos por dar todo o animal aos pobres. Nós somos ricos, podemos comer carne quando quisermos. E se dermos aos pobres eu acredito que Deus fica mais contente.”
Pedimos a segunda cerveja. “Não queres outra Coca-Cola?” “Não, eu não vim para beber, vim mesmo só para conversar.”
O Eduardo comenta que a imagem que os ocidentais têm dos muçulmanos é a de um povo violento, disposto a matar em nome de Deus. O Ibrahim responde, com cara triste, que percebe essa ideia, que de facto há muitos muçulmanos que usam o nome de Deus para fazer as coisas mais terríveis, mas que não é essa a visão do Corão que ele professa.
A terceira e última rodada é paga por ele. “É uma tradição no meu País, gostamos de oferecer.”
Agora falamos sobre Londres e o custo de vida: “o que eu gosto mais aqui é poder aprender com outras pessoas, como vocês. Uma coisa é ler nos livros, e passado pouco tempo esquecer; outra é poder falar com as pessoas sobre a sua cultura.”
Diz-nos que não lhe importa o dinheiro e as coisas materiais, que tudo se vai quando morremos. “Nós somos corpo e alma. Agora eu gosto de estar na tua companhia. Mas se tu morresses, para mim não faria sentido, e seria até incómodo, estar num quarto com o teu corpo morto, porque a alma já não está lá.”
Voltamos para casa mais ricos. Eu volto mais crente e católico (= universal). E assim ganhei um amigo muçulmano.

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